02 maio 2007
Cristiano Cartaxo Jornalista - Por Adalberto dos Santos

Cristiano Cartaxo é desses poucos poetas anônimos que todos um dia já ouviram falar. Refiro-me a todos no sentido de Cajazeiras e Paraíba, pelo menos. De algum modo, nas escolas de nossa cidade os professores já trataram de recitar em alguma oportunidade o mais famoso poema de Cristiano, “Minha Terra Natal é Cajazeiras”. Se não, é porque os tempos são outros, tempo sem memória nem poesia, mas no meu tempo, no meu tempo ainda se lia Cristiano Cartaxo na escola.
Nascido em 07 de agosto de 1887, professor, farmacêutico e sonetista dos bons, Cristiano tinha a envergadura dos maiores cultores das métricas tradicionais, como a do decassílabo e do alexandrino maior. Postura típica da poesia dita clássica, o bardo de Cajazeiras era um poeta encantador, de versos que davam à poesia um sentido para lá de imemorial: porque nas linhas da sua corda lírica a poesia agia como verdadeira música. Seu fazer poético preferia a lapidação de estruturas rítmicas para a obtenção de efeitos sonoros para lá de sugestivos, em vez da construção de versos com estruturas secas que mal dizem o que têm para dizer pelo aperto próprio à expressão torpe da prosa mais mal acabada que existe. No quesito imagem, ele era criador de imagens tão raras quanto os melhores poetas de verve impressionista. Mas, e além de tudo, o poeta transpirava a emoção pela cadência do verso: seus poemas são um primor de musicalidade. Sem exageros, arrisco dizer que na Paraíba só há dois grandes poetas clássicos, no sentido técnico do termo: um é o Augusto dos Anjos, o outro, Cristiano Cartaxo. E podem me acusar de ufanismo, mas a poética de Cristiano respira quase todas as conotações do mundo clássico e é trespassada de um canto a outro pelo verso arejado dessa poesia.
Não cheguei a conhecer Cristiano Cartaxo, nem o poeta, nem o professor, nem o farmacêutico. A imagem que não tenho dele é devida aos mais velhos da minha cidade. Sei quantas vezes ouvi alguém falar que quem passasse em frente a sua casa encontraria o poeta sentado numa cadeira observando os passantes no fim da tarde, lá pelos idos de 70. Cartaxo se acomodava timidamente no seu lugar e se, passando, alguém puxasse conversa, ele chamava para uma prosa, e haja desandar política, latim, francês, e muita, muita poesia. O poeta quando ficava só falava nos silêncios, e meditava às horas mortas do crepúsculo tudo o que em seguida se transformaria em rima e poesia.
O poeta Francisco Dantas me disse uma vez que chegou a presenciar em suas vindas do Colégio Diocesano, como aluno, o poeta em sua luxuosa cadeira de fim de tarde no mormaço do sangradouro do açude velho, em sua Vila Isabel, residência onde construiu sua moradia para a criação dos filhos ao lado da sua musa, Isabel Sales Cartaxo, Dona Betinha. Na Vila Isabel, antes de morrer, Cristiano plantou árvores frutíferas a mais de ver, umbus, cajás, mangueiras, goiabeiras, oliveiras, tamarindeiros... No fim, ficaram as coisas pendentes, os poemas que não se fizeram e a musa inspiradora de sua poesia a penetrar a paixão pelo verso no coração do filho que se tornou poeta, Constantino, uma outra alma desse tamanho. Em frente a esta casa está a praça que hoje leva seu nome e onde foi erguido um busto com a lápide onde está escrito seu poema mais famoso, o nosso hino terral, a maravilha poética mais cara à cidade do Padre Rolim.
Seu primeiro livro, Quarenta Sonetos (1957), foi publicado em honra à passagem de seus 70 anos, e logo em seguida republicado na antologia A Musa quase toda pelas impressoras da União Editora, com apresentação feita pelo ex-governador da Paraíba, Ivan Bichara, também grande intelectual e escritor cajazeirense. A Musa quase toda traz, além dos quarenta sonetos, uma reunião de outros poemas líricos que versam de temas de amor à terra Cajazeiras, à natureza e à religiosidade ao versejar sobre situações cotidianas em encontros de amigos ou na contemplação de cidades e lugares. Pena que o livro esteja em edição esgotada. E por isso, a meu ver, merece uma reedição urgente com notas e estudo crítico. Os poucos exemplares que se conhece fazem parte da coleção de uns poucos aficionados por história e literatura cajazeirense. O último exemplar que cheguei a ver estava na Biblioteca Pública Municipal Castro Pinto. Depois dessa vez, nunca mais vi, e isso a nada menos que há uns dez anos atrás.
Bem, este é o cajazeirense que todos conhecem, o poeta. Mas há um outro Cristiano, um que ainda não foi publicado e que precisa ser urgentemente conhecido. Trata-se da produção em prosa de Cristiano Cartaxo que está dispersa pelos arquivos de historiadores e que é fruto de seu trabalho como jornalista na coluna que assinou em alguns órgãos de imprensa sob o título de “Cavacos de Casa”. Pelo que se sabe, Cristiano escreveu muitos artigos e crônicas para a imprensa cajazeirense e paraibana, mas, não se sabe por que, esses trabalhos continuam anônimos. Terá sido esquecimento da parte da família ou dos historiadores? Pode ser, as pessoas são muito esquecidas em Cajazeiras.
Este ano tive acesso a algumas das crônicas e artigos do escritor cajazeirense, publicadas entre a década de 50 e 60 do século XX, e me vi diante do mais puro domínio da língua pátria e da mais esclarecida opinião sobre os fatos políticos, culturais e sociais de nosso lugar, como em nenhuma outra época já se fez na imprensa de Cajazeiras. Li seus artigos e crônicas com o mesmo entusiasmo com que li seus poemas em vários momentos de minha vida. Mas não li sem lembrar que ele era poeta, e por isso a cada linha observava a sutileza da linguagem do escritor, cheia de melindres de estilo que dá inveja aos melhores jornalistas.
Farmacêutico era Cristiano, com larga experiência na medicina tradicional, dita prática em sua época, mas crítico leitor da realidade local, de modo tão atraente e divertido que há em sua prosa um quê delicioso de fluente inquietação com os problemas enfrentados pelos cajazeirenses pela metade do século XX. E tudo era assunto ao cronista: da criação de ruas à numeração das casas dos moradores, dos problemas com as estradas ao abandono de crianças sem escola que assaltavam muros e quintais, e que furtavam os cajazeirenses, “muitas vezes pelo prazer, já por vício adquerido que por tendências naturais”, como diz Cristiano.
Depois de ler os textos do cajazeirense, fiquei querendo vê-los impresso. Um livrinho que apurasse a delicadeza do estilo jornalístico de Cristiano e introduzisse seus principais temas, apresentando as principais crônicas e artigos de “Cavacos de Casa”, viria em boa hora. Na verdade, queria os dois livros impressos: a Musa quase toda, reeditada, e este conjunto de artigos e crônicas para quem público soubesse quem foi e como atuava o jornalista Cristiano Cartaxo. Seria uma homenagem à altura de tão singela poesia e de tão grandioso jornalismo. Vejam lá, vocês donos de gráfica e editoras da Paraíba pequenina.
 
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