18 março 2007
Damião Pedro e os pífaros de São José - por Adalberto dos Santos
Damião Pedro e os pífaros de São José
Adalberto dos Santos

Naldinho ligou quase no fim da noite me chamando para um encontro com Seu Damião Pedro, líder da Banda de Pífaros São Sebastião do Sitio Antas 2, de São José de Piranhas. Nem esperei que ele perguntasse se eu aceitava; naquela hora mesmo (vinte três e trinta da noite) se ele quisesse subiríamos a serra para ver a banda de pífaros que toca para São José. Fui dormir logo, esperando a viagem, mas mal fechei os olhos e meu amigo chegou com sua bolsa a tiracolo e a moto envenenada para subir a montanha. Saímos às dez, e em menos de uma hora chegamos ao sítio de Damião Pedro. Seu Damião não estava em casa, havia saído para tocar numa missa em Cachoeira dos Índios, disse sua filha. Aguardássemos, fulano tinha vindo daquelas bandas agorinha e garantiu que a missa havia sido cancelada; em minutos o pai estaria de volta. E, de verdade, não demorou muito. Menos de dois minutos depois, a camionete D-20 apontava no alto da ladeira. De dentro do carro, Seu Damião abria um sorriso desse tamanho.
Ao descer do carro, correu ao encontro do Naldinho e o abraçou com força: “Mas rapaz, olha quem tá aqui! Bem vindo, meu amigo velho!” E ao me olhar, perguntou confuso: “Esse aqui é aquele menino que viajou comigo, né?” Naldinho respondeu que não e eu fiquei nervoso por causa da confusão. Foi quando o pifeiro reconheceu e disse: “É não, é o outro. Ah, é o professor. Rapaz, bem vindo também, que satisfação!”
Pronto, estávamos em casa. Para nossa alegria, hoje é a véspera da Festa de São José. Já estava preparando o gravador para começar uma entrevista com seu Damião, quando ele mandou que um dos seus filhos pegasse a moto do Naldinho e fosse buscar Antonio Matos lá na bodega de não sei quem que era para ensaiar os pífaros pra Festa de São José. “Diga a ele que venha pro ensaio e que Naldinho tá aqui com o professor.” O rapaz subiu na moto e saiu em disparada à procura do outro pifeiro. Em minutos, Antonio Matos descia da moto com um pífaro na mão. Logo mais chegava Chico Rafael, outro componente da banda. Os dois ficaram afinando os sopros. Nesse momento eu já estava entrevistando o pifeiro.
Damião Pedro da Silva começou a tocar pífaro com 12 anos de idade, ainda na região cearense, onde, em contato com outras bandas aprendeu de ouvido centenas de melodias. A primeira foi uma marcha de estrada que ouviu do pifeiro Zé Braz, do Ceará. Segundo Seu Damião, essa marcha nunca lhe saiu da memória, mas foi a primeira, e a partir dela criou seu invejável repertório que inclui marchas, baião, choros, forrós, caborés, valsas, entre outros ritmos.
Seu Damião começou a fazer a Festa de São José em 1970. A de amanhã será, portanto, a 37ª, e seus preparos já se iniciaram hoje, 18, porque amanhã o dia será cheio de atividades. “Já tem bem umas oito mulheres aqui”, ele disse, “cuidando de comida, matando galinha, porco, criação. Hoje elas emendam pela noite. Quando for duas horas da madrugada, aí elas vão pernoitar; e aí eu me alevanto e vou cuidar na minha luta também.” A luta do velho Damião é o preparo de sua famosa panela de munguzá, “de minha autoria mesmo”, informou, que o pifeiro prepara na madrugada do dia 19 “que é pra dar descanso às mulheres”. Segundo Seu Damião, são quatorze litros de milho dentro da panela, que no seu bojo tem o principal da iguaria sertaneja: diversos temperos, orelha de porco, toicim de porco, mocotó e fava branca.
O pifeiro disse que o trabalho da véspera garante que já no início da manhã do dia 19 haja bastante comida para os convidados da festa. “Ah, meu amigo quando é de quatro pra cinco horas da manhã já tem comida aqui como diabo. Graças a Deus, eu nunca fiz uma festa aqui pra anoitecer e amanhecer e quando chegar o dia 20 eu olhar lá pra dentro e não ter mais comida. Amanhece o dia e as panelas estão tudo cheia, cheia de muita coisa que sobrou do outro dia. Graças a Deus!”
Amanhã a festa começa às quatro e meia da manhã, com a alvorada, em frente à casa de Seu Damião. Aí a banda toca até cinco ou seis da manhã. Depois os músicos tomam o café e em seguida vão fazer as visitas às casas; percorrem uma a uma as casas do sítio. Em cada casa tocam e soltam fogos de artifício. Fazem essas visitas até o meio dia. Depois voltam para o almoço. À tarde começam os preparos para logo mais, à noite, quando acontecem as rezas. A partir das oito, nove horas, é a vez das rezadeiras e da comunidade se encontrarem para rezarem a Novena, onde são cantados os benditos em homenagem a São José. A banda também acompanha a Novena.
Ao final da Novena, é a vez de os músicos entregarem os instrumentos a São José. Esse é o momento da “venda”, quando os pifeiros fazem o ritual de entrega da banda através de uma coreografia onde, sem parar de tocar, formam uma cruz, fazem em seguida um oito simbólico (que não sei exatamente por que) e, finalmente, ajoelham-se diante do santo. Depois da “venda”, os pifeiros tocam novos benditos e, para finalizar, são convidados pela comunidade para tocar o “profano”, as canções mais animadas que serão dançadas por todos até o final da noite.
Na festa deste ano, segundo Seu Damião, não haverá “fogos grandes”. Ele explica por que: “Este ano eu não comprei fogos grandes porque eu tô arrodeado com quatro crianças novas. Tem mulher de dieta aqui nos vizinhos, e eu num quero assustar ninguém, Deus me livre! É arriscado uma mulher adoecer ou uma criança, né?”
Quando acabei a entrevista, passamos à música. Na banda os tocadores: Damião Pedro e Antonio Matos, pifeiros, Mateus no bumba e Chico Rafael na caixa. Primeiro eles fizeram um improviso, tocando uma música atravessada em que uma melodia acompanhava outra e a marcação do bumba surdava os cantos dos pássaros que, no início da pifonia, calaram para ouvir a banda. Depois Antonio Matos lembrou de uma música tocada por seu pai, muito antigamente. Era a “Acauã”, que tem uma letra que começa assim: “Comadre, comadre Cuã, eu quero tomar café / a chaleira tá no fogo / e o café no Baturité”. Então emendaram com o canto da “Acauã”. Em seguida tocaram o “Capote”, um tema que, como a “Acauã”, procura imitar o canto da ave que diz “tô fraco, tô fraco”. E assim, da mesma forma os pífaros iam fazendo a imitação do bicho: Antonio Matos respondendo ao pífaro de Damião Pedro, e este ao daquele.
Ao final do “Capote”, entraram com uma valsa. Isso mesmo, tão valsa como qualquer das que conhecemos no gênero clássico. Depois um baião, depois um baião rebatido, depois um caboré e depois um bendito. A penúltima música foi “A briga do cachorro com a onça”, com uma harmonia também muito interessante. Nessa música os pífaros fazem um contraponto especial: é uma música redonda, que lembra o movimento de luta e perseguição entre os dois bichos.
Um minuto de silêncio para retomar o fôlego, e Seu Damião puxou, com impressionante maestria, uma nova marcha, chamada de “Sorriso da noite”. É uma marcha estradeira. Naldinho quis acompanhar os músicos pegando o bumba de Mateus, mas não conseguiu. “Que levada é essa, Damião?”, perguntou. Seu Damião riu e disse: “Que história de levada, Naldinho! É ritmo, rapaz”. E o Naldinho tentava, mas nada de acompanhar os outros instrumentos. Aí Damião soltou o pífaro e pediu o bumba. “Toca, Antonio Matos”, ordenou. E virando para o Naldinho, fez uma de quem estava ensinando algo muito importante (e estava): “É assim, homi: pam, pam, pam, pam, pam, pam, pam, pam, pam, pam... Pancada furtada, rapaz! Olha o ritmo”. E fez a batida com o pé para que Naldinho entendesse e em seguida o acompanhasse. No mesmo instante Antonio Matos havia começado a melodia. A música era tão empolgante que também arrisquei acompanhar o ritmo, sacolejando a mão sobre o gravador, como se tocasse um pandeiro. Seu Damião meu olhou e sorriu, estava de acordo.
Depois da aula de pancada furtada, sua senhora, a Dona Francisca José da Silva, ou Dona Bila, como a chama o bem humorado Damião Pedro, veio dizer que o almoço estava na mesa. Mas não era hora. Para mim, faltava uma música: o “Choro dos Índios”. Essa eles ainda não haviam tocado. Durante a pifonia, pedi mais de uma vez: “E o choro, Damião?!” Chico Rafael, o caixeiro, sorria; Damião fazia o mesmo, Antonio Matos e até o menino Mateus, neto de Damião Pedro, davam gargalhadas com a minha insistência. Só fui entender depois: ninguém lembrava a melodia.
Tudo bem, fomos almoçar. Na mesa, os músicos pediram para que ficássemos até amanhã, dia da Festa de São José. Agradecemos muito, mas não ia dar, teríamos compromisso na segunda-feira. De repente, um tenso silêncio tomou conta da sala. Eu entendia: por conta de ter declinado do convite, mastigávamos nossa amizade, embora continuássemos unidos através da música; de todos, Damião era o mais decepcionado. Vendo aquele homem simples, fiquei pensando no que ele havia dito em certo momento da entrevista: “Dinheiro não me envolve, meus amigos, o que me envolve é o meu prazer com a minha banda. Se eu pudesse, todo dia, a todo o momento, eu tocava pras pessoas com a minha banda, com meus companheiros”.
Quando o almoço acabou, nos preparamos para ir embora. Nos abraços de despedida, sentimos novamente os muitos protestos do velho pifeiro. Ah, mas não dava mesmo, Damião; não dava, Mateus, Antonio Matos, Chico Rafael, não dava, amigos. Por mais que quiséssemos não dava. Vocês lembraram o “Choro dos Índios”?! Lembraram nada, ficaram devendo. Ora, há dias em que a gente não pode atender os amigos! Em casa corri para escrever esta crônica. Aproveitei o ritmo das melodias dos pífaros de São José: matreiros como um capote, uma onça, um cachorro.
 
posted by Nu com a minha musa at 11:51 PM | Permalink | 1 comments