27 janeiro 2007
ESSA FORÇA - Por Adalberto dos Santos

Uma das canções do Caetano Veloso que mais me comovem é “Gente”, do disco Bicho, que Caetano nos deu em 1977. “Gente” é uma canção comovente porque fala de uma coisa muito pouco comum hoje em dia: fala de dignidade e de respeito humano. E Caetano faz isso numa simplicidade que chega a atingir as pessoas mais insensíveis às mensagens poéticas. Na canção o compositor responde a uma pergunta curiosa, que nem sempre fazemos: o que nos faz sentir o humano e valorizar nossa vida mesmo frente a coisas tão desagradáveis como, sei lá, a dor e o sofrimento da existência? De modo sutil, Caetano nos diz que há uma força misteriosa no existir e que essa força reforça a importância de ser gente.
Sobre essa força já falaram muitos, e até de modo difícil, mas Caetano dá o tom certo a sua mensagem e nos aponta, entre o som e a palavra, que essa força é uma força viva, pulsante, alegre, visível até, porque se manifesta onde menos procuramos: no cotidiano mesmo, a cada segundo de vida. Acho linda a canção porque ela consegue desde o início trazer confiança a quem a ouve, confirmando que cada sujeito é gente e que se assim não se sente tem o dever de procurar ser e sentir.
Para Caetano, ser gente é poder perguntar e responder, procurar e achar, querer e escolher, viver e amar, enfim, desejar ser feliz. Um movimento que o ser humano mais comum executa, pois de forma muito verdadeira ser humano é também ser gente. Ao longo da canção vemos o poeta perguntar: se você pode ser gente, por que não ser? E estimula modestamente: seja, meu irmão. É um desafio que a todos se impõe logo ao nascer, a destinação de todos, então seja. Ora, para além de bem e mal, Caetano dá um sentido místico a essa coisa da obrigação de você dever saber essa força que o faz “ser o bom”. Para o poeta, a vida é uma resistência, um protesto contra uma espécie de não-querer tornar-se o que já se é, de se realizar, de ser gente. Ele diz: qualquer pessoa, em qualquer lugar, em qualquer tempo “quer durar, quer crescer, quer luzir”.
Luzir é fazer brilhar uma luz. Mas a luz da canção do Caetano não é a luz do sucesso, não é o brilho dos louros da vaidade que alguns esperam da vida. Na canção, a luz de ser gente traduz-se na alegria de viver a vida com dignidade, com respeito e achando-se digno e respeitado. Como numa outra canção do mesmo disco em que Caetano diz: “O certo é ser gente linda e dançar dançar dançar” (de Two Naira Fifty Kobo). Dançar é dar movimento à vida, de forma alegre, espontânea, viva. A dança cria um espaço eternamente renovado de prazer e de ao mesmo tempo lembrança e esquecimento, é um momento mágico onde ninguém, nem nós mesmos, sabemos por que somos tão felizes. Talvez porque em nós pulsa uma força, essa força que não devemos esquecer, que está em nós, para quem Caetano com uma sensibilidade profética apela: “Não, meu nego, não traia nunca essa força, não. Essa força que mora em seu coração”.
Bonito. No fundo a letra de Caetano atinge os que faltam coragem para ir em frente. Quem é gente tem seguir em frente, sempre. Caetano diz aos homens o que eles precisam: você faz a vida funcionar, você não esqueça disso, você é importante, você merece tudo, você tem que lutar, não deixe a vida parar, não pare, procure ser gente linda, se a vida ficar ruim, não esqueça, você é “reflexo do esplendor”. Assim, ao final aprendemos que ao longo da vida nos esforçamos para garantir que a gente brilhe.
Acho que é isso que procuramos fazer quando ensinamos: garantir que a luz que há nas pessoas venha a luzir o mais honestamente possível. Afinal, quando você vem à escola você tem mil desejos: o maior entre eles, o mais especial é deixar que essa força ainda pouca em você brilhe pouco a pouco diante das novidades das descobertas. Cada momento vivido acende essa luz escondida e dá mais vida à força misteriosa que há em nós. Testemunhei isso muitas vezes na escola, mas num colégio em que quase todos os alunos (de horário noturno) tinham uma atividade empregatícia a desenvolver par a par com as responsabilidades da escola, fiquei ainda mais convencido de que essa força existe nos homens. Por essas e outras do cotidiano escolar, fiquei convicto de que estava trabalhando com gente de verdade, no sentido que antes expus através da canção do Caetano Veloso.
Sempre me comoveu o fato de que eles trabalhavam e tinham que vir à escola depois do trabalho. Achava bonito essa coisa. Era muito bonito saber que as donas de casa viam à escola após um dia inteiro com os filhos, o marido e os outros de casa, cuidando deles, que é o mais importante; que as moças que trabalham nas lojas comerciais vinham; que os rapazes da construção civil e dos postos de moto-táxi vinham; os da empresa têxtil, da indústria, da feira, da roça, do hospital, enfim, de todos esses trabalhos, e daqueles que se parecem anônimos, mas não são porque seu resultado vem à vista no mais oculto do cotidiano, o trabalho das que fazem a casa ficar limpa e que emprestam seu carinho de mãe, tia, irmã aos filhos de outras pessoas. Isso era bonito mesmo. Era bonito e eu sabia que para eles e elas era duro, era uma coisa de quem sabia “essa força” a que Caetano se refere. Todos sabiam que ter trabalho era necessário, afinal gente também tem que comer, mesmo que ao fim do dia tenha que ir à escola, para saber, talvez para ajudar a ser feliz (?).
Ah, tem uns aí que não sabem como é duro trabalhar. E na precisão de ter que fazer duas coisas, trabalhar e estudar, a dureza é ainda maior. Não sabem que às vezes é impossível conciliar dois mundos. Embora a vontade de aprender vá além da necessidade de saber (e gente quer saber!), a vida lá fora atrapalha a possibilidade de ir mais fundo nas experiências do ensino. Tendo o trabalho lá fora, o tempo fica corrido aqui dentro. Fica corrido demais, duma forma que quando na escola a gente precisa de tempo para contemplar e agir sobre as coisas, os ombros suportam com infinita amargura o peso de uma cabeça que não é uma, mas mil. É fardo demais: se não há “essa força” parece que gente não agüenta. Mas há, a força existe, e gente vem e consegue. Ela busca um tempinho extra e se não têm esse tempinho, ainda assim inventa, cria - à força de tudo e de todos. Aí, gente continua, mesmo que precise na outra escola lavar a roupa ou amassar o pão.
Acho que se o Presidente me ouvisse, escreveria dizendo: Presidente, como disse Caetano, gente como essa é de se cuidar, de se respeitar, de valorizar e de ser feliz. Para gente assim precisa um país mais justo, um lugar bonito para se morar e uma escola ainda mais bonita para os que estão e os que vão chegar. Depois de tanto trabalho e de repetidas caminhadas até a escola, dessas loucuras de fim de noite escrevendo, estudando, lendo o máximo possível, essa gente está cansada. O que ela deseja, Presidente? Talvez adivinhe o que ela deseja depois desse diploma entre a escola e a lida. Essa gente quer garantir que a seus filhos seja dado o direito de optar entre o estudo ou o trabalho, não os dois de uma vez, porque assim eles podem aproveitar mais dignamente “essa força”, a mesma que fez do senhor o nosso Presidente.

Foto: Alunos do Colégio Manoel Mangueira, em Cajazeiras - PB



 
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